terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

And sometimes we think we are not ok but really we are

Queria conseguir dizer do impacto que isto tem tido na minha vida, mas não sei se consigo. De cada vez que começo a teclar sobre esta moléstia, começo a chorar e não consigo avançar. Apago tudo e vou fazer outra coisa qualquer. Geralmente essa coisa qualquer é comer chocolate. Embora saibamos que a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer, um chocolate é um chocolate é um chocolate. Mimo, precisamos de mimo e de compreensão. E eu tenho isso. Tudo. E nem assim posso considerar que lido bem com isto. E daí, o que será lidar bem com isto? Um chorrilho de lugares comuns construídos na base da culpa judaico-cristã, é o que vos digo.

Cenário: passar-se mal todos os meses desde os 14 anos (menarca aos 13), muitos dos meses tendo de recorrer ao hospital para controlo da dor, sofrer hemorragias imensas, ter anemia, chegar à estação em que se planeia engravidar e os meses e os anos passam, sem filhos, mas com dores. Queixa-se de não ter filhos e ainda por cima ter dores e ter de ouvir a besta o diplomado em medicina a dizer “Não sei porque se está a queixar, 70% das mulheres férteis queixam-se de dores menstruais.”. Onde diabo terá aquele energúmeno diplomado em medicina ido buscar aquela estatística?

Após o 4º médico e mais 12 anos, alguém propõe um diagnóstico pela primeira vez: ENDOMETRIOSE.

Então, isto tem nome? E não é normal, é uma doença? Não é um tanto ou quanto exagero chamar-lhe doença? Agora que me habituei a dizer que é normal. Afinal, são só dores e hemorragias incapacitantes e causa de infertilidade.

Começam agora a ver onde encaixa o chorrilho de lugares comuns construídos na base da culpa judaico-cristã?

Fomos convencidas durante anos de que as nossas condições são nada mais do que a paga por sermos mulheres. No meu caso, mais de metade da minha vida tem sido marcada pela endometriose. Façam contas, sou uma quarentona (enxuta!) e comecei nestas andanças aos 14. A primeira vez que acordei com dores não fazia a mínima ideia do que se passava comigo. Tenho tão presente essa madrugada, a minha confusão sobre o que sentia, decidir se deveria acordar os meus pais, a ida ao hospital e o alívio após a medicação. E nunca mais parou. Quer dizer, intervalou há cerca de 15 anos após uma intervenção cirúrgica por laparoscopia, mas voltou passados uns anos.

Gostava de dizer com toda a certeza que eu não sou endometriose nem a endometriose toma conta da minha vida. Mas receio não o conseguir dizer sendo totalmente honesta. A minha biografia está muito habitada por esta maldita. Tive um casamento anterior que foi muito marcado para o final devido à questão “filhos” e esta questão não pode ser separada da questão endometriose. As dores já me inibiram demasiadas vezes de socializar e de trabalhar. Após os últimos tratamentos, à procura de uma gravidez, piorou exponencialmente e agora as minhas dores não se resumem ao período menstrual. Agora não há regra, é quando lhe apetece, e onde lhe apetece. E com a intensidade que lhe apetece. E isto cansa.
E isto cansa tanto.

Já não se trata de brincar com o Síndrome Pré-menstrual, é um ciclo non-stop. Não sei com o que posso contar. Passo umas semanas sem dores, passo as semanas seguintes com dores. Faço pílula contínua mas tenho hemorragias na mesma. Vou na terceira semana. Com hemorragias e com dores. E isto cansa.

E dou por mim a calçar as sapatilhas hoje de manhã para ir para o trabalho enquanto faço contas a quantas horas faltam para regressar a casa e deitar o corpo. E dou comigo em lágrimas e a afligir o Chaparro e a pensar que merda quero sentir-me melhor, com mais força. Sem dores e com mais força. A minha cabeça está activa e não pára, quero que o meu corpo corresponda, mas ele responde-me que estou cansada e que só o quero deitar. E tudo fica tão difícil e sinto-me a perder o chão e já sei que me vão perguntar o que tenho e só me vai apetecer fugir.

E isto cansa tanto.

Porque tem o resto da vida toda à volta.
A espera pela convocatória para a cirurgia. Já vos disse que o veredico de 3 médicos para o meu pecado de endometriose foi a histerectomia radical?
A nova etapa do meu pai. Mais um tratamento, paliativo e não curativo, já sabemos senhor doutor, mas não queremos saber e repudiamos isso tudo, isso tudo, isso tudo. O meu pai está bem, muito obrigada. O meu pai está bem.
E o resto da vida toda à nossa volta.
E o nosso amigo que emigrou com uma situação incerta e dizermos uns aos outros que vai correr tudo bem. Que preocupação.
E a nossa casa a ser feliz em preparação para o nosso filho ou a nossa filha ou os nossos filhos ou as nossas filhas, para a equipa de adopções aprovar. Para a equipa de adopções aprovar. Porém a equipa nunca mais chega, porque as equipas de adopções também têm baixas no pessoal, mas nós temos tanta dificuldade em compreender como é que um processo de adopção pode ser adiado ou atrasado ou lá o que é por falta de pessoal. E não compreendemos e ficamos com medo que o nosso filho ou a nossa filha ou os nossos filhos ou as nossas filhas estejam já à nossa espera e nós que nunca mais chegamos.
E nós que nunca mais chegamos.

E o resto da vida toda à nossa volta.

E ter energia para aplicar técnicas no nosso trabalho e conseguir ter uma palavra amiga para os clientes.

E querer chegar a casa e deitar o corpo. Vemos um filme num dia e choramos. Vemos outro filme noutro dia e já sabíamos que íamos chorar. E choramos uma vez mais.

cena final do filme Monster's Ball,
em que se come gelado de chocolate  :)
e ouvimos We're gonna be alright
E chega o dia em que dizemos não. Não. Dizemos não à forma como estas dores e estas feridas estão a tomar conta de nós. E arranjamos forças e vamos a pé para casa.  E pensamos eu não sou endometriose nem a endometriose toma conta da minha vida. Fazemos os cerca de 4 km a pé e recebemos o vento no rosto e lembramo-nos que temos o fogo dentro de nós*. E sentmo-lo - ao fogo, e pensamos: we’re gonna be alright.


E depois dizemo-lo em voz alta no meio da rua e não importa quem passa. We’re gonna be alright.
Assim que entramos em casa, cai uma tromba de água e sorrimos e repetimos as palavras da nossa querida amiga: And sometimes we think we are not ok but really we are.



* referência a A Estrada de Cormac McCarthy
Cipreste

3 comentários:

Ana disse...

Um beijinho muito grande para ti*

Joana disse...

Olá. Eu nunca tinha ouvido falar de endometriose até me ter sido diagnosticado um (suposto) quisto sebáceo abdominal que, estranhamente, me provocava dores terríveis na altura do período. De quisto passou a um fibroqualquercoisa relacionado com as cicatrizes das cesarianas e finalmente, após algumas ecografias, a um nódulo de endometriose. O meu ginecologista receitou-me um medicamento que surgiu recentemente (visianne - dienogest 2mg) que minimiza o desconforto e pode eventualmente evitar a necessidade de uma cirurgia. Muito provavelmente não estou a comunicar novidade nenhuma...em todo o caso fica a nota. Beijinhos.

Cipreste disse...

Mãe Sabichona: :)*

Obrigada, Joana
sim, já tinha ouvido falar e, de facto, não se aplica a mim, qualquer medicamento é uma solução temporária
Isto hoje está agreste, é nestes dias em que estou completamente conformada para a histerectomia ;)
Estás a dar-te bem com o Visanne?